Quando falamos sobre direito ao aborto e o termo como sujeito específico, abrimos uma discussão entre dois mundos expostos nos debates da atualidade: a crença e a ciência.
Ao contrário do que a cultura da polarização nos faz acreditar, uma não é oposta, sobrepõe ou anula a outra. Ou seja, confiar na crença individual da valorização e manutenção da vida, desde a sua concepção não inibe a necessidade de compreender o debate da legalização do direito ao aborto como uma questão de saúde pública. Assim, ainda possamos pertencer a liberdade de crença, porém, termos a segurança em olhar um contexto, colocando-se no espaço da mulher sem a interpretação através dos seus julgamentos nesse encaixe, mas, utilizando a empatia, percebendo que muitas vezes a experiência individual de cada mulher, diverge com a notória realidade coletiva.
No Brasil o aborto é considerado crime desde 1940, e, ainda, estima-se que ocorram, aproximadamente, um milhão de casos de abortos induzidos no país anualmente (dados COFEN, divulgados pelo Ministério da Saúde, 2018), sendo que, em torno 250 mil levam mulheres à hospitalização. Podemos evidenciar, primeiramente que, o fato de criminalizar a prática de abortar não inibe que ela ocorra, e, principalmente, não protege a vida de mulheres, ao qual contabilizamos uma perda a cada dois dias, aproximadamente.
Ainda, o debate sobre as vidas perdidas através da prática do aborto não legalizado, precisamos ainda, realizar um essencial recorte, uma vez que, na maioria expressiva de vidas perdidas são mulheres jovens, negras, solteiras e com escolaridade até o nível fundamental. (COFEN,2018). Assim, podemos confirmar até esse ponto que, mulheres que decidem pela prática da interrupção da gravidez, fazemna ultrapassando suas crenças culturais e religiosas, considerando a possibilidade de responder criminalmente e analisando a sua realidade de fato presente, para, ainda manter conscientemente a opção de prosseguir com o abortamento.
Ocorre que, atualmente, a realidade econômica individual de cada mulher determina as possibilidades e riscos de sobreviver ao procedimento, entrando em um mundo ao qual precisamos apontar a hipocrisia exacerbada de conceitos que fingem não enxergar o quanto o racismo estrutural, o classismo e o conceito patriarcal de controle e objetificação do corpo da mulher, atualmente, tiram vidas ceifadas através de um discurso conservador que alega as preservar desde sua “concepção”.
Mesmo com limitadas hipóteses ao qual possibilitam um aborto legalizado, o Estado exige análise, determinação e encaminhamento do Poder Judiciário, análise fiscal do Ministério Público Estadual, reforçando a evidência de controle abusivo dos corpos, deixando lastro de possibilidades quanto a interpretações individuais diversas e evidenciando que a liberdade de gerenciar seu corpo, ainda que em caso de violência sexual ou de risco à própria vida de gestante, dependa exclusivamente da autorização de quem verdadeiramente tem o poder sobre seus corpos, a sociedade.
Até aqui, podemos conjuntamente concordar que, criminalizar não evita que abortos ocorram, apenas colocam em grande risco a vida de mulheres negras e pobres. Fazer um controle abusivo sobre os direitos reprodutores da mulher, apenas reforça a cultura patriarcal de que a mulher tem obrigações maternas pela sua natureza, delimitando a liberdade de escolha, ao mesmo tempo ofertada aos homens que, em 2021, quase cem mil crianças foram abortadas pelo pai nas certidões de nascimento sem que esses sofressem qualquer espécie de responsabilização criminal.
Importante frisar com muita ênfase que, as complicações de saúde pós-aborto, são em quase toda a totalidade atendidas pelo Sistema Único de Saúde, caracterizando assim, significante carência de políticas de saúde pública, uma vez que, precisa-se avaliar o binômio entre o expressivo número de mortes em decorrência e os custos que as complicações em razão de aborto inseguro geram aos cofres públicos.
Assim, o debate sobre a legalização da prática do aborto demonstra a necessidade de ultrapassar as questões relacionadas as crenças individuais e alcançar a racionalidade de ser uma problemática de saúde pública, necessitando de desenvolvimento de políticas específicas de enfretamento ante o número expressivo de vidas de mulheres perdidas, e, ainda, a razão de caracterizar raça e casse social específica nessas mortes amparadas por discursos hipócritas de proteção à vida.
Se como Simone de Beauvoir nos trouxe o entendimento de que “não se nasce mulher, tornase mulher”, carece-nos agora, como mulheres, tornarmos seres existentes, pertencentes e merecedoras de liberdade dentro da sociedade.
Autora: Duda Medeiros, Advogada Especialista em Segurança Pública.
*As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião da JSB.