A questão do trabalho doméstico entre jovens negras levanta debates que vão muito além de estatísticas e discursos. Ela traz à tona séculos de exclusão, racismo estrutural e um padrão que, embora tenha mudado na superfície, mantém suas raízes mais profundas nas heranças coloniais de exploração e subordinação. Afinal, a escravidão realmente acabou? Ou persiste sob novas formas?
O Brasil foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, em 1888. Contudo, a libertação não significou integração social, apoio econômico ou oportunidades de desenvolvimento para os recém-libertos e suas próximas gerações. As estruturas sociais e econômicas permaneceram praticamente inalteradas, e a população negra, principalmente as mulheres, foi relegada a trabalhos manuais e mal remunerados, com destaque para o trabalho doméstico.
O trabalho doméstico é a ocupação mais comum para mulheres negras no Brasil, especialmente jovens que vivem em situação de vulnerabilidade e veem poucas alternativas para contribuir financeiramente com suas famílias. Essa situação é alimentada pela precariedade de acesso à educação e pela ausência de políticas públicas que promovam a equidade de oportunidades para jovens negras.
Embora o trabalho doméstico seja regulamentado pela PEC das Domésticas (2013), que trouxe alguns direitos fundamentais, ele ainda representa um cenário de exploração. Longas jornadas, baixos salários e falta de respeito são comuns. Nesse contexto, o vínculo entre o trabalho doméstico de hoje e a exploração do passado fica ainda mais evidente, especialmente quando lembramos que muitas dessas jovens são empregadas em casas de famílias brancas, repetindo a dinâmica hierárquica da escravidão.
O racismo estrutural no Brasil atua de maneira a fortalecer e perpetuar a associação histórica entre mulheres negras e o trabalho doméstico . Esse estigma, alimentado ao longo das gerações, impõe uma restrição “naturalizada” que associa mulheres negras a ocupações subalternas e de baixos salários, restringindo suas oportunidades. Como explica Sueli Carneiro, o racismo cria um ciclo em que jovens negras são “naturalmente” direcionados a determinados papéis, resultando em um cenário no qual enfrenta não apenas barreiras econômicas, mas também culturais e sociais profundamente arraigadas (Carneiro, 2003).
A verdadeira emancipação de jovens negras no Brasil passa pelo acesso a uma educação de qualidade e à criação de oportunidades reais e concretas. Programas de incentivo, bolsas de estudo, projetos de inclusão no mercado de trabalho e ações afirmativas podem contribuir para que essas jovens se enxerguem em outros lugares, ocupando outros espaços.
As cotas raciais no ensino superior e em concursos públicos são um exemplo de como políticas públicas podem fazer a diferença, abrindo caminhos para uma inclusão mais justa. Contudo, para que o impacto seja duradouro, é essencial que essas políticas venham acompanhadas de suporte financeiro e psicológico, para que essas jovens tenham condições de se manterem nos estudos, rompendo com o ciclo de precariedade e subemprego.
A realidade do trabalho doméstico revela que há muito ainda a ser feito para que os jovens negros do Brasil sejam realmente livres, com as mesmas possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional. O rompimento desse ciclo requer uma transformação estrutural profunda, que desafie as heranças raciais e classistas. É um desafio coletivo, que exige comprometimento de toda a sociedade. Afinal, enquanto houver uma jovem negra forçada a escolher entre o subemprego e a sobrevivência, a escravidão permanecerá viva, sob novas roupagens, mas ainda dolorosamente presente.
*As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião da JSB.